Quantas vezes já ouvimos — ou dissemos — algo como: “Mas por que planejar? E o que exatamente planejar? Como?”
São perguntas legítimas, que voltam e voltam, especialmente quando o fazer docente parece nos engolir com sua urgência. Para muitos, o planejamento ainda parece um ritual burocrático, algo que se faz para “entregar”, e não para orientar.
Mas... será mesmo que é só isso?
Na vida cotidiana, até mesmo um passeio simples exige algum tipo de planejamento. Escolhemos o destino, o horário, o que levar. Mesmo sem papel e caneta, imaginamos o percurso. E na escola, com tudo o que está em jogo — sonhos, trajetórias, aprendizagens — por que seria diferente?
Planejar, na docência, é mais do que preencher quadros. É tentar construir um fio condutor, um caminho possível entre o ponto de partida e os muitos possíveis pontos de chegada. É desenhar o percurso com a consciência de que ele poderá (e deverá) ser ajustado ao longo do caminho.
Há quem diga: “Ah, eu já tenho tudo na cabeça. Já sei o que fazer.”
Mas o tempo corre, as demandas se multiplicam e, sem perceber, a prática vira improviso — não no bom sentido da criação, mas no atropelo. Sem planejamento, os objetivos se diluem, as intenções pedagógicas perdem potência. E a gente, sem querer, passa a navegar sem mapa.
O planejamento é o lugar onde o pensamento ganha corpo. Onde registramos o que já fizemos, o que pretendemos fazer, e o que ainda precisa ser pensado com mais calma. Não é um engessamento, mas um suporte. Um ponto de apoio quando as dúvidas nos visitam. E elas vêm, sempre vêm.
Sim, até para um simples passeio no final de semana a gente se organiza. Escolhe o lugar, combina os horários, verifica o que precisa levar. Às vezes, até checamos a previsão do tempo. Talvez por hábito. Talvez porque, no fundo, queremos que tudo aconteça da melhor forma possível. Queremos aproveitar, sem contratempos, sem frustrações. E fazemos isso sem pensar duas vezes.
Por que, então, quando se trata do planejamento pedagógico, tantas dúvidas e resistências aparecem?
Planejar é, em essência, um exercício de cuidado. É tentar garantir que o percurso de aprendizagem aconteça com sentido, com continuidade. É o gesto de quem, ao invés de caminhar no escuro, decide acender uma lanterna. Pode não enxergar tudo. Pode ser que precise mudar de rota. Mas sabe de onde partiu e tem alguma ideia de onde quer chegar.
Esse planejamento, no entanto, não deve ser confundido com rigidez. Ao contrário: um bom planejamento é como uma rede elástica — sustenta, mas também cede. Acolhe os imprevistos, permite redirecionamentos, abre espaço para as surpresas que a turma traz. Ele não engessa: acompanha. Não aprisiona: orienta.
Planejar também é um ato de escuta. Quando escolhemos uma atividade, precisamos antes escutar o que a turma já sabe — e o que ainda precisa descobrir. É esse conhecimento sobre as crianças que nos permite propor situações desafiadoras, mas possíveis. Porque é justamente o desafio — aquele que instiga sem paralisar — que move a aprendizagem.
Afinal, ninguém aprende com o que já domina completamente. E tampouco aprende diante do impossível.
É nesse ponto delicado, entre o que a criança já sabe e o que ainda não domina, que mora o verdadeiro desafio pedagógico. Um desafio que provoca, que convoca a pensar, que convida a criar estratégias, que dá vontade de continuar. Mas se errarmos a medida — e propusermos algo inalcançável — o efeito pode ser o contrário: a frustração, o desânimo, o abandono.
Planejar é, portanto, encontrar essa medida justa. E isso só se faz com atenção, escuta e respeito aos tempos e percursos de cada criança.
Escolher atividades e textos para a sala de aula é mais do que uma questão de planejamento — é, antes de tudo, uma escolha ética e pedagógica. Não basta que a proposta seja “bonita” ou “criativa”. É preciso que ela provoque o pensamento, que desafie — mas não paralise. Um bom desafio é aquele que o aluno encara com curiosidade, com vontade de tentar. Um mau desafio, por outro lado, o faz sentir-se pequeno, perdido, sozinho diante da tarefa.
E quando isso acontece — quando a criança se julga incapaz — a aprendizagem perde terreno. Surge a frustração, o desinteresse, até a recusa. Não é que o aluno não queira aprender. É que ele já não acredita que pode.
Por isso, o ponto de partida deve ser sempre aquilo que a turma já sabe. As competências que já possui, os conhecimentos que foram construídos até aqui. A partir desse chão, é possível avançar. Textos e propostas precisam estar em sintonia com a etapa de desenvolvimento da turma — e isso inclui não só a faixa etária, mas também o percurso de leitura e escrita de cada grupo.
Outro aspecto que merece atenção é a forma como organizamos os conteúdos. Há momentos em que uma sequência de atividades faz sentido; em outros, um projeto pode ser mais potente. Em certos casos, atividades permanentes funcionam como fios que costuram o tempo da aprendizagem. Cabe ao professor decidir — e essa decisão vem sempre acompanhada de uma pergunta essencial: “Qual a melhor forma de garantir que esse conteúdo ganhe sentido para essa turma?”
E não é só isso. Também é preciso pensar *com quem* e *como* cada aluno vai realizar determinada atividade. Trabalhos em duplas? Em grupos? De forma coletiva? Tudo isso exige do professor um olhar atento, um conhecimento profundo de seus alunos: suas afinidades, seus saberes, suas necessidades, suas potências. Refletir antes de agir. Escutar antes de propor. Organizar os agrupamentos não como um encaixe de peças fixas, mas como movimentos provisórios, que favoreçam trocas reais entre as crianças.
E, claro, acompanhar. A gente sabe — não é possível estar com todos ao mesmo tempo. Mas é preciso estar com cada um, em algum momento. E isso exige tempo. Exige registros. Exige parar, olhar, anotar. Quanto mais anotações, mais caminhos se abrem. Porque é nelas que o professor reencontra os passos da criança, identifica os tropeços, reconhece os avanços e pode pensar, com mais precisão, em como intervir.
Afinal, cada anotação é também uma promessa de continuidade. De um trabalho que não se encerra na tarefa do dia, mas que se constrói aos poucos — como quem borda uma colcha com muitos fios, de muitas cores, com a delicadeza de quem sabe que ensinar é também um ato de cuidado.
As intervenções que fazemos no cotidiano da sala de aula — essas pequenas aproximações ao saber de cada criança — podem ser decisivas. Às vezes, uma pergunta lançada no momento certo é o que faltava para que o aluno avance. Outras vezes, é a escuta silenciosa diante da tentativa de uma criança que se arrisca. Nem sempre a intervenção é dizer algo. Às vezes, é não interromper.
Mas para que isso aconteça, o professor precisa conhecer seus alunos, suas hipóteses, seus modos de pensar. E, sobretudo, precisa se perguntar: “Como posso intervir de forma que esse aluno continue querendo aprender?”
Cada criança é única. Há quem aprenda melhor no coletivo. Há quem precise da escuta individual. Há quem se beneficie da conversa com o colega. Cabe ao professor observar, refletir e escolher a melhor forma de se aproximar — seja com a turma inteira, em pequenos grupos, duplas ou em momentos individuais.
Toda intervenção carrega, em si, a chance de provocar pensamento. E provocar pensamento é muito mais do que corrigir. É perguntar, comparar, devolver, lançar um novo olhar sobre aquilo que já se sabe — e, com sorte, abrir portas para o que ainda se pode saber.
Nesse sentido, as consignas — ou orientações das atividades — ganham importância especial. Elas não são apenas instruções. São convites. Por isso, precisam ser claras, simples, compreensíveis. Quando mal formuladas, geram confusão. Quando bem construídas, iluminam o caminho da tarefa e dão segurança à criança.
Observar como os alunos interpretam a consigna é parte do trabalho. O professor que caminha pela sala, atento ao que está sendo feito, tem a chance de ajustar o percurso em tempo real. Reformular a proposta, se for necessário. Ajudar quem ficou para trás. Escutar o que a atividade está dizendo — às vezes mais sobre o aluno do que sobre o conteúdo.
Planejar, então, não é só prever o que vai acontecer. É construir condições para que o melhor possa acontecer. E isso inclui prever o imprevisível, estar disposto a rever, reorganizar, escutar de novo. Porque o planejamento não é feito para controlar. É feito para apoiar. E apoiar o percurso de aprendizagem das crianças exige coragem, paciência, sensibilidade e estudo.
Se seguimos atentos, registrando, refletindo, arriscando com responsabilidade, é possível ajustar o fazer pedagógico às necessidades reais dos alunos — e, assim, contribuir para que cada um deles avance, com confiança, em direção àquilo que ainda não sabe... mas pode aprender.
🏅 Finalista do Prêmio Educador Nota 10 (2017)
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